Na Europa, o homicídio legal foi abolido e discute-se a moratória global. EUA, China, Irã, Arábia Saudita e Paquistão respondem por 90% das execuções. Por Gianni Carta, de Genebra
Joaquín josé martínez, quatro dos seus 38 anos no corredor da morte em uma prisão na Flórida, abre um sorriso e comenta: “Hoje vejo alguns aspectos engraçados no dia em que fui preso, teve algo de hollywoodiano”.
Ao volante de seu carro esporte, no dia 28 de janeiro de 1996, Martínez rumava para a casa de sua ex-mulher para visitar as duas filhas. Ao parar em um farol vermelho, viu emergir de um automóvel de polícia à sua esquerda um oficial apontando-lhe um rifle. Como nos filmes, o policial grita: “Mãos ao alto!” Pela direita, outro policial ameaça atirar. “Desligue o motor do veículo!”, ordena. “Eu não sabia como reagir”, reconhece Martínez no 4º Congresso Mundial Contra a Pena de Morte, realizado em Genebra entre 24 e 26 de fevereiro.
Organizado pela associação francesa Ensemble Contre la Peine de Mort (ECPM), cofinanciada pela Confederação Suíça em parceria com a Coalizão Mundial Contra a Pena de Morte, atraiu jornalistas e militantes eloquentes como Bianca Jagger. Magistrados e autoridades políticas também compareceram, inclusive o premier espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero. Coube a este, atual presidente da União Europeia, anunciar a criação de uma comissão internacional para obter a moratória global sobre execuções até 2015. A proposta provocou comentários carregados de ceticismo, ainda que a iniciativa, claro, tenha sido bem recebida.
Martínez volta a descrever o dia de sua prisão: “Se eu desligasse o motor do carro, como ordenara um dos policiais, o da esquerda me mataria ao deixar de ver minha mão, e vice-versa”. Àquela altura, dezenas de policiais apontavam, de suas- viaturas, suas armas para Martínez, cidadão espanhol detentor de um green card. Sobre a sua cabeça, um ziguezague ruidoso de helicópteros, com câmeras de tevê a capturar as imagens do suposto assassino do filho do xerife da cidadezinha de Brandon, traficante de drogas, e de sua companheira, uma profissional do strip-tease. O filho do xerife levou oito tiros e sua namorada, 33 facadas na nuca.
“Eu tinha 24 anos e vivia o chamado american dream”, conta Martínez, morador de Nova York desde menino, quando emigrou da Espanha com os pais. Em Miami conseguira comprar o carro esporte, administrava a sua própria empresa, firmara o namoro. “No momento em que eu era detido me perguntava qual era o motivo para eu ter virado alvo de tantos policiais.”
A acusação, soube mais tarde, era de duplo homicídio. As provas: o filho do xerife trabalhara em uma empresa onde Martínez também fora funcionário e suas -duas armas (Martínez tinha porte) eram do calibre da usada para matar o traficante de drogas. Martínez nem sequer conhecera o filho do xerife.
Mas o que complicou de vez a vida do espanhol foi o testemunho de Sloane, sua ex-mulher. Sloane garantiu ao xerife que seu ex-marido era o assassino procurado, versão fundamental para sustentar a condenação à pena de morte no primeiro julgamento, além de ter servido para detonar a operação de captura. Um fato teria deixado Sloane muito “irritada”, recorda Martínez. “Logo após o nosso divórcio, ela telefonou para meu celular e eu atendi na Disney World, onde estava com minha namorada.”
Três telefonemas de Sloane ao ex-marido foram registrados com o objetivo de obter a sua confissão. As conversas, todas inaudíveis, foram enviadas ao FBI. O serviço secreto também não conseguiu flagrar o reconhecimento de culpa de Martínez.
O próprio xerife forjou uma transcrição, apresentada ao júri em 2007, na qual Martínez supostamente confessava para a ex-mulher os dois assassinatos. Para turvar ainda mais o cenário, alguns prisioneiros testemunharam que Martínez lhes teria confiado a responsabilidade do homicídio duplo.
Martínez saiu do tribunal, diante das duas- filhas aos prantos, para o corredor da morte. Seu objetivo era questionar a “regularidade do processo”, uma noção crucial na legislação americana. Recorrer a um novo processo nos EUA é “muito difícil”, explica o senador francês Robert Badinter, conferencista no congresso em Genebra e ministro da Justiça de François Mitterrand, responsável pelo fim da pena de morte na França, em 1981. “Na verdade, todo o sistema judiciário americano revela-se uma verdadeira máquina de produzir condenados à morte”, anota Badinter em Contre la Peine de Mort (Fayard, 2006, 313 págs., 6,50 euros).
Antes de ser examinados pelo sistema judiciário, “suspeitos” negros, hispânicos e de outras minorias têm, nos EUA, mais chances de terminar atrás das grades ou condenados à pena capital. Em casos de pena de morte nos EUA, jurados podem ter preconceito racial. Ou o júri pode não representar a composição étnica da comunidade onde o acusado está sendo julgado. Esse, por sinal, foi o caso de Mumia Abu-Jamal, o ex-jornalista e militante negro acusado de ter matado o policial Daniel Faulkner. Abu-Jamal foi julgado por dez jurados brancos e apenas dois negros, em plena Filadélfia, onde 40% da população é negra. O militante foi condenado à morte em 1982 e tornou-se uma figura emblemática do movimento contra a pena de morte, sempre negando ter matado o policial.
O jornalista Dave Lindorff, autor de um livro sobre Abu-Jamal, enfatiza outro detalhe relevante: jurados potencialmente contrários à pena de morte não podem compor o júri. A legislação -americana somente aceita aqueles “qualificados a julgar”. Mas o advogado do diabo não poderia argumentar que alguns desses “qualificados” teriam uma prévia inclinação para mandar alguém para a cadeira elétrica? E se tiverem preconceitos raciais, essa chance de pôr fim na vida de alguém não aumentaria?
Outra falha do sistema penal americano tem raízes nas classes sociais dos suspeitos. Quanto mais dinheiro o acusado tiver, maiores as chances de obter uma defesa sólida. Mas, como lembra Badinter, a maioria dos condenados à pena capital é formada por excluídos da sociedade, cuja defesa é de responsabilidade de um advogado remunerado pelo Estado. Segundo Badinter, em 1999, um advogado do Alabama recebia 2 mil dólares em honorários para defender uma pessoa “passível da pena de morte”. No Mississippi, o quadro era pior: 12 dólares por hora. Na maioria dos casos, diz o jurista, esses advogados mal conhecem o dossiê de seus clientes.
Como diz Martínez, “a pena capital é para quem não tem capital”. Seus pais, contudo, levantaram 1 milhão de dólares na Espanha para a sua defesa. Seu advogado provou a falsidade das fitas inaudíveis, onde Martínez confessava ter matado o traficante de drogas e sua companheira. A transcrição apresentada pelo xerife, ficou evidente, havia sido forjada.
Para a libertação de Martínez, em 7 de junho de 2001, foi mais importante o fato de sua ex-mulher ter feito um depoimento a seu favor. E os presos terem enviado cartas para a Suprema Corte, admitindo que teriam sido cooptados pelo oferecido de penas mais curtas se incriminassem Martínez. Ao mesmo tempo, a pressão colocada sobre o governo da Flórida foi maciça: o governo espanhol, a União Europeia, o Parlamento italiano e até o papa João Paulo II saíram em sua defesa.
Desde 1973, 131 mulheres e homens escaparam dos corredores americanos por terem sido inocentados. Mas quantos exe-cutados eram inocentes? Quantos morreram nos 35 estados onde a pena de morte vigora? E quantos culpados continuarão livres? “O sistema judiciário tem o direito de matar e assim cometer o crime que supostamente tem de proibir ou punir?”, pergunta Arnaud Gaillard, coordenador do congresso.
Atualmente, um terço dos Estados do planeta aplica a pena de morte. Além dos EUA, há mais 57 Estados ditos retencionistas, aqueles contrários à abolição do homicídio legal. Segundo a ECPM, em 2008, cerca de 90% das execuções recenseadas haviam ocorrido em cinco países: EUA, China, Irã, Paquistão e Arábia Saudita.
O único país transparente em relação ao número de execuções são os Estados Unidos, com 37 mortos. Dados checados pela Anistia Internacional e pela Dui Hua Foundation colocam o número de executados na China entre 1,7 mil e 6 mil. A China é, portanto, campeã em número de execuções.
Baseado em Pequim, o advogado Jiang Tianyong comenta: “A pena de morte é o maior instrumento de repressão política, mas o governo também o utiliza como instrumento social”. Segundo algumas ONGs,- a pena capital teria ocorrido por meio de injeções aplicadas em ônibus nas províncias chinesas, e órgãos dos mortos teriam sido extraídos e comercializados.
Após as duvidosas eleições no Irã, em junho de 2009, dois manifestantes foram enforcados no fim de janeiro. Outros nove aguardam as suas sentenças. A iraniana Shirin Ebadi, premiada com o Nobel, lembrou que, após a Revolução Islâmica, os líderes modificaram as sentenças de morte “para também serem aplicadas aos menores”. Assim, o Irã é campeão no número de mortes de menores, superando, em segundo lugar, a Arábia Saudita.
Nas terras de Ahmadinejad, mais de 50 crimes e delitos são passíveis da pena de morte. Uma simples reincidência no consumo de álcool pode conduzir ao homicídio legal. O apedrejamento público de mulheres adúlteras é comum, e um saco é colocado na cabeça das mulheres enterradas até o busto. As pedras são de tamanho médio, para a morte não ser muito rápida nem demasiadamente lenta. Várias dessas adúlteras são forçadas pelos maridos a se prostituir.
Abolicionistas da pena de morte oferecem argumentos sólidos para uma moratória global, com base na resolução adotada em 18 de dezembro de 2007 pela Assembleia-Geral das Nações Unidas. À parte o direito fundamental à vida, dois outros temas foram debatidos em Genebra. Primeiramente, não há evidência científica de que a pena de morte tenha poder dissuasivo sobre futuros atos criminosos. Pelo contrário, a pena de morte nutre uma “sociedade militarista”, nas palavras do jornalista Lindorff.
Segundo ponto: o custo da pena de morte é muito superior ao da prisão perpétua. John van de Kamp, ex-procurador federal na corte da Califórnia, explica que no seu estado o Tesouro público gasta anualmente 137 milhões de dólares em -custos de procedimentos para 670 homens e mulheres aguardarem nos corredores da morte – um recorde no país. Quando o homicídio legal é substituído pela prisão perpétua, o custo anual desaba para cerca de 11 milhões de dólares. O motivo? Os procedimentos criminais para levar adiante o castigo supremo são muito mais complexos. E podem durar até 25 anos.
Com um déficit público de 20 bilhões de dólares, o governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, tem freado o número de execuções, a despeito do seu histórico nas telas de cinema. Van de Kamp entende que é difícil colocar a questão econômica antes da moral no caso da abolição da pena de morte. Mas ele justifica: “Uso todos os argumentos possíveis. E o econômico parece surtir grande efeito entre aqueles favoráveis à pena capital nos EUA”.
O ex-procurador fornece outro dado interessante. Segundo pesquisas, 65% dos americanos são favoráveis à pena capital. Mas nem sempre: eles seriam contra mediante a garantia de o detido por homicídio cumprir prisão perpétua sem direito à liberdade condicional. Um repórter comenta: “Isso diria alguém a favor da pena de morte, caso não matassem alguém da sua família”. Van de Kamp rebate: “O olho por olho resulta em cegueira”.
Bill Pelke, membro do comitê Murder Victims Families for Human Rights (Famílias de Vítimas de Assassinato pelos Direitos Humanos), antes a favor da pena capital para Paula Cooper, uma menina de 15 anos responsável pela morte de sua avó, passou a pregar compaixão aos condenados. “A morte de um assassino perpetua a violência, e não é a cura para o sofrimento. A cura é saber perdoar.”
Em uma entrevista exclusiva, pergunto a Martínez se ele sente raiva de sua ex-mulher, por tê-lo colocado no corredor da morte. “Não, falo com ela todas as noites, é a mãe de minhas duas filhas.” E do sistema judicial americano, não tem raiva? “Sinto-me traído.” É muito fácil você se sentir americano, continua ele, mostrando o seu green card. “Eis aí a bandeira americana, o hino. E o meu american dream, que estava se tornando realidade. De repente, tudo desaba.” Por que, pergunto para encerrar a conversa, ele vive hoje novamente na Espanha? “Sinto-me mais seguro aqui.” A Europa, como sabe Martínez, é a única região do mundo onde a pena de morte foi abolida.
Fonte: Carta Capital
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