Inelegibilidade e Vida Pregressa dos Candidatos
O Tribunal, por maioria, julgou improcedente argüição de descumprimento de preceito fundamental, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB, em que questionava a validade constitucional das interpretações emanadas do Tribunal Superior Eleitoral - TSE em tema de inelegibilidade fundada na vida pregressa dos candidatos, bem como sustentava, por incompatibilidade com o § 9º do art. 14 da CF, na redação que lhe deu a ECR 4/94 ("Art. 14... § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta."), a não-recepção de certos textos normativos inscritos na Lei Complementar 64/90, nos pontos em que exige o trânsito em julgado para efeito de reconhecimento de inelegibilidade e em que acolhe ressalva descaracterizadora de hipótese de inelegibilidade ("Art. 1º São inelegíveis: I - para qualquer cargo:... d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, transitada em julgado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem 3 (três) anos seguintes; e) os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena;... g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da data da decisão; h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político apurado em processo, com sentença transitada em julgado, para as eleições que se realizarem nos 3 (três) anos seguintes ao término do seu mandato ou do período de sua permanência no cargo;... Art. 15. Transitada em julgado a decisão que declarar a inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o diploma, se já expedido."). ADPF 144/DF, rel. Min. Celso de Mello, 6.8.2008. (ADPF-144)
Preliminarmente, o Tribunal acolheu questão de ordem suscitada pelo Min. Celso de Mello, relator, no sentido de julgar, desde logo, o mérito da ação. Em seguida, reconheceu, por votação majoritária, a legitimidade ativa ad causam da AMB. Os Ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski e Carlos Britto assentaram a legitimidade ativa, tendo em conta as particularidades do caso, sobretudo a existência de uma perplexidade na magistratura nacional com relação à interpretação dos dispositivos impugnados, mas fizeram ressalva no sentido de não se comprometerem com a tese da legitimação universal da AMB. Vencidos, nessa parte, os Ministros Marco Aurélio, Menezes Direito e Eros Grau que entendiam ausente o requisito da pertinência temática para propositura da ação. As demais preliminares suscitadas foram rejeitadas. No mérito, entendeu-se que a pretensão deduzida pela AMB não poderia ser acolhida, haja vista que desautorizada tanto pelo postulado da reserva constitucional de lei complementar quanto por cláusulas instituídas pela própria Constituição da República e que consagram, em favor da pessoa, o direito fundamental à presunção de inocência (CF, art. 5º, LVII), e que lhe asseguram, nas hipóteses de imposição de medidas restritivas de quaisquer direitos, a garantia essencial do devido processo. ADPF 144/DF, rel. Min. Celso de Mello, 6.8.2008. (ADPF-144)
Rejeitou-se a pretensão deduzida pela argüente no que respeita às alíneas d, e, e h do inciso I do art. 1º, e ao art. 15, todos da LC 64/90, ao fundamento de que o postulado consagrador da garantia de inocência irradia os seus efeitos para além dos limites dos processos penais de natureza condenatória, impedindo, desse modo, que situações processuais ainda não definidas por sentenças transitadas em julgado provoquem, em decorrência das exigências de probidade administrativa e de moralidade a que se refere o § 9º do art. 14 da CF, na redação dada pela ECR 4/94, a inelegibilidade dos cidadãos ou obstem candidaturas para mandatos eletivos. Afastou-se, também, a alegação de que a ressalva contida na alínea g do aludido inciso I do art. 1º da LC 64/90 estaria em confronto com o que disposto na ECR 4/94 porque descaracterizaria a hipótese de inelegibilidade referida no preceito legal em questão. No ponto, registrou-se que o TSE, em decorrência de várias decisões por ele proferidas, estabelecera diretriz jurisprudencial consolidada no Enunciado 1 da sua Súmula ["Proposta a ação para desconstituir a decisão que rejeitou as contas, anteriormente à impugnação, fica suspensa a inelegibilidade (Lei Complementar 64/90, art. 1º, I, g)"], mas, posteriormente, reformulara essa orientação, com o declarado propósito de conferir maior intensidade à proteção e defesa da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato eletivo. Além disso, reputou-se insustentável a suposta transgressão a preceitos fundamentais pelo fato de determinada regra legal ressalvar, para efeito de superação da cláusula de inelegibilidade, o acesso ao Poder Judiciário, em ordem a neutralizar eventual deliberação arbitrária que haja rejeitado, de modo abusivo, as contas do administrador. ADPF 144/DF, rel. Min. Celso de Mello, 6.8.2008. (ADPF-144)
Asseverou-se que estaria correto o entendimento do TSE no sentido de que a norma contida no § 9º do art. 14 da CF, na redação que lhe deu a ECR 4/94, não é auto-aplicável (Enunciado 13 da Súmula do TSE), e que o Judiciário não pode, sem ofensa ao princípio da divisão funcional do poder, substituir-se ao legislador para, na ausência da lei complementar exigida por esse preceito constitucional, definir, por critérios próprios, os casos em que a vida pregressa do candidato implicará inelegibilidade. Concluiu-se, em suma, que o STF e os órgãos integrantes da justiça eleitoral não podem agir abusivamente, nem fora dos limites previamente delineados nas leis e na CF, e que, em conseqüência dessas limitações, o Judiciário não dispõe de qualquer poder para aferir com a inelegibilidade quem inelegível não é. Reconheceu-se que, no Estado Democrático de Direito, os poderes do Estado encontram-se juridicamente limitados em face dos direitos e garantias reconhecidos ao cidadão e que, em tal contexto, o Estado não pode, por meio de resposta jurisdicional que usurpe poderes constitucionalmente reconhecidos ao Legislativo, agir de maneira abusiva para, em transgressão inaceitável aos postulados da não culpabilidade, do devido processo, da divisão funcional do poder, e da proporcionalidade, fixar normas ou impor critérios que culminem por estabelecer restrições absolutamente incompatíveis com essas diretrizes fundamentais. Afirmou-se ser indiscutível a alta importância da vida pregressa dos candidatos, tendo em conta que a probidade pessoal e a moralidade representam valores que consagram a própria dimensão ética em que necessariamente se deve projetar a atividade pública, bem como traduzem pautas interpretativas que devem reger o processo de formação e composição dos órgãos do Estado, observando-se, no entanto, as cláusulas constitucionais, cuja eficácia subordinante conforma e condiciona o exercício dos poderes estatais. Aduziu-se que a defesa desses valores constitucionais da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato eletivo consubstancia medida da mais elevada importância e significação para a vida política do país, e que o respeito a tais valores, cuja integridade há de ser preservada, encontra-se presente na própria LC 64/90, haja vista que esse diploma legislativo, em prescrições harmônicas com a CF, e com tais preceitos fundamentais, afasta do processo eleitoral pessoas desprovidas de idoneidade moral, condicionando, entretanto, o reconhecimento da inelegibilidade ao trânsito em julgado das decisões, não podendo o valor constitucional da coisa julgada ser desprezado por esta Corte. Vencidos os Ministros Carlos Britto e Joaquim Barbosa que julgavam a argüição procedente. ADPF 144/DF, rel. Min. Celso de Mello, 6.8.2008. (ADPF-144)
A decisão do STF, certamente, reconheceu a necessidade de averiguação da vida pregressa do candidato em vista dos princípios da probidade e da moralidade. Entretanto, mesmo assim, decidiu pela impossibilidade dessa verificação, a menos que haja o trânsito em julgado de sentença condenatória.
Então, por que, a despeito do tão em voga neoconstitucionalismo, a Corte aparentemente decidiu contra tais princípios?
O cerne da motivação do acórdão está no fato de que não se pode valer de um princípio para restringir direitos. O neoconstitucionalismo, sobreposição dos princípios às normas, tem como escopo proporcionar uma eficaz operatividade dos direitos humanos. E a restrição de direitos sem o devido processo legal, também garantido por princípios expressos no texto constitucional, obviamente, não está nessa linha, afrontando a dignidade da pessoa humana, núcleo do Estado brasileiro.
Como pode um processo em curso, onde não restou provada a existência, efetivamente, da ação imputada ao candidato, gerar causa de inelegibilidade? Permitir tal incoerência poderia ensejar a inelegibilidade de alguém que, apesar de estar respondendo processo, consiga, ao final, provar sua inocência.
A coisa julgada "irradia os seus efeitos para além dos limites dos processos penais de natureza condenatória" e coroa o princípio da presunção de inocência, afinal, um direito fundamental, constitucionalmente previsto. Logo, é primordial sua existência, bem como do devido processo legal, para que possa haver qualquer restrição de direitos.
Ao final da discussão, o que restou demonstrado quanto ao artigo 14 da CR/88, foi a necessidade de cautela quanto a "era do Judiciário". Explico: em termos históricos, é de se observar que o século XIX foi "do Legislativo"; o séc. XX teve maior ingerência do Executivo; e, atualmente, no séc. XXI, estamos na "era do Judiciário", pela visibilidade da ingerência no destino do Estado. Todavia, a falta de prudência nesses momentos pode levar alguns ao excesso, inclusive, quanto à separação de poderes. É essencial ficar claro que a função Legislativa incumbe ao Legislativo, e não ao Judiciário. Colacionaremos texto esclarecedor do Informativo em tela sobre a questão:
"(...)no Estado Democrático de Direito, os poderes do Estado encontram-se juridicamente limitados em face dos direitos e garantias reconhecidos ao cidadão e que, em tal contexto, o Estado não pode, por meio de resposta jurisdicional que usurpe poderes constitucionalmente reconhecidos ao Legislativo, agir de maneira abusiva para, em transgressão inaceitável aos postulados da não culpabilidade, do devido processo, da divisão funcional do poder, e da proporcionalidade, fixar normas ou impor critérios que culminem por estabelecer restrições absolutamente incompatíveis com essas diretrizes fundamentais".
Informativo 514
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