quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Receptação e crime pressuposto


1. Autonomia Típica Formal e Dependência Típica Material

A receptação, em face do nosso atual ordenamento jurídico-penal, embora seja crime autônomo, é inegável tratar-se de delito parasitário ou decorrente, o qual surge em razão de um crime anterior, também denominado de pressuposto ou a quo, do qual se obtém o objeto material do crime de receptação.
Conforme reza o próprio tipo legal da receptação, esta implica em "adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte" (art. 180, caput, CP).
Note que não há qualquer contradição nesse entendimento, vez que a autonomia da receptação diz respeito à sua existência em tipo legal próprio, do qual decorre uma determinada pena para o sujeito ativo. A autonomia da receptação, por conseguinte, implica na possibilidade de se identificar o seu agente como sujeito ativo de um crime, e não como mero co-autor ou partícipe do delito antecedente. Ao passo que a relação de dependência entre a receptação e o crime antecedente diz respeito à necessidade de que exista um "produto de crime pressuposto" a ser receptado pelo agente.
Hungria fala na existência de uma "relação de acessoriedade material" entre a receptação e a existência de crime anterior, consignando que, "afora isso, a receptação é crime autônomo, isto é, alheia-se ao crime a quo e existe por si mesma". Registra, ainda, esse mestre penalista, que "costuma-se dizer, com justeza, que há, no caso, uma acessoriedade objetiva de crimes, mas não de processos penais".[1]
Tanto é autônomo o crime de receptação, seja na modalidade dolosa ou culposa, que o nosso diploma penal preceitua que "a receptação é punível, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor do crime de que proveio a coisa" (art. 180, § 4º, do CP).
Conforme ensina Capez, a "absolvição do autor de crime pressuposto não impede a condenação do receptador, quando o decreto absolutório tiver se fundado nas seguintes hipóteses do art. 386 do CPP: não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal (inciso IV); existir circunstância que isente o réu de pena (inciso V); não existir prova suficiente para a condenação (inciso VI). Por outro lado, impede a condenação do receptador a absolvição do autor do crime antecedente por estar provada a inexistência do fato (inciso I); não haver prova acerca da existência do fato criminoso anterior (inciso III); existir circunstância que exclua o crime (inciso V)".[2]
Ainda no que toca à autonomia do crime de receptação, vale sublinhar o disposto no art. 108 do CP, segundo o qual "a extinção da punibilidade de crime que é pressuposto, elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não se estende a este". Assim, é possível concluir que qualquer causa extintiva da punibilidade incidente sobre o delito antecedente não aproveita ao agente de receptação, de modo que este continua a responder pelo delito praticado, como se nada houvesse ocorrido com o crime pressuposto. E, mais, mesmo nos casos em que a punibilidade do delito a quo dependa de representação do ofendido ao Parquet ou de oferecimento de queixa-crime, a ausência destes não impede o reconhecimento e, conseqüente, responsabilização do agente por crime de receptação.

2. Natureza do Crime Pressuposto

Observe que o crime pressuposto não precisa, necessariamente, ser um crime contra o patrimônio, embora normalmente o seja. O delito anterior pode ser, por exemplo, de peculato.
Contudo, mister se faz salientar que, obrigatoriamente, o ilícito penal anterior deva ser um crime, em sentido estrito. Assim, inexiste receptação de produto de mera contravenção penal (ex: não figura como receptador aquele que oculta os valores auferidos com a prática da mendicância, nos termos do art. 60 da Lei de Contravenções Penais).
Anote-se que nada impede que o delito anterior seja uma receptação. É plenamente possível a receptação de receptação (também denominada pelo direito alemão de receptação em cadeia), já que a mesma coisa pode ser objeto de receptações constantes, obedecendo a uma linha sucessiva. A única exigência, para tanto, é que a coisa - objeto material da receptação - não perca o seu caráter criminoso em meio a essa linha sucessória, ou seja, que todos os agentes que estão recebendo a coisa conheçam de sua origem ilícita.
Caso haja rompimento nessa cadeia seqüencial de receptações, com a aquisição da coisa por terceiro de boa-fé (desconhecedor do caráter delituoso de que se reveste a coisa), mesmo que o sujeito subseqüente a este último conheça inteiramente da origem criminosa da coisa, não poderá ser considerado receptador, vez que não houve crime antecedente ou pressuposto. Não há crime a quo, vez que a conduta do terceiro de boa-fé não se adequou ao tipo legal da receptação ("coisa que sabe ser produto de crime" - art. 180, caput), constituindo fato atípico.
Segundo Hungria, em sede de receptação "o que se faz mister é que a coisa seja proveniente de crime, e este não é apenas o crime originário, senão também a intercorrente receptação. Se, entretanto, a coisa vem a ser adquirida ou recebida por terceiro de boa-fé, que, por sua vez, a transmite a outrem, não comete este receptação, ainda que tenha conhecimento de que a coisa provém de crime. Houve, em tal caso, uma interrupção ou solução de continuidade da situação patrimonial anormal criada pelo crime originário e mantida, acaso, por intercorrente receptação de má-fé".[3]

3. Crime Pressuposto e Continuidade Delitiva

Por fim, lembra-nos Pierangeli de que "a receptação de várias coisas, provenientes de um único ou de vários crimes, realizada num só contexto de ação, é crime naturalmente único. Todavia, se muitas são as coisas, ainda que procedentes de um crime, e são receptadas mediante ações separadas no tempo, dá-se um delito continuado. Portanto, a receptação vincula-se ao fato anterior definido como crime, de onde provém a coisa, mas não ao número de delitos praticados anteriormente, e sim às ações que o receptador desenvolve, que podem levar à continuidade delitiva".[4]
Nesse sentido, veja que, para determinação da consumação da receptação, bem como da quantidade de crimes praticados, não se leva em conta, exclusivamente, o número de crimes antecedentes dos quais derivam os produtos do crime (objeto material da receptação). Nesse caso, o importante é a fixação do momento em que se deu a receptação das aludidas coisas com relação ao delito pressuposto.
Assim, temos que:

a) Se vários os delitos anteriores e, por conseguinte, vários os produtos do crime, sendo que a receptação se dá por condutas distintas e isoladas no tempo, vários são os crimes de receptação (concurso de crimes, que pode vir a configurar delito continuado de receptação, desde que preenchidos os requisitos legais do art. 71 do CP);
b) Se vários os delitos anteriores e, por conseguinte, vários os produtos do crime ou, se um único delito anterior, mas vários os produtos do crime, dando-se a receptação por conduta única em determinado instante, resta configurado crime único de receptação;
c) Se há delito antecedente único, mas vários são os produtos do crime, e a receptação opera-se em momentos distintos, caracterizada pode restar a receptação continuada (desde que satisfeitos os demais requisitos legais do art. 71, do CP).


Bibliografia:

1.HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. v. VII (arts. 155 a 196). 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 321.
2.CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial. v. 2. 2 ed. São Paulo:Saraiva, 2003, pp. 526, 527.
3.HUNGRIA, Nélson. op. cit., p. 305.
4.PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte especial (arts. 121 a 234). 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 613.


Autor: Leonardo Marcondes Machado

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